sexta-feira, 27 de junho de 2008

O incomum...

Segunda-feira de carnaval. Rumo a Olinda. Beatriz e Joana foram ao encontro de Lúcia e Fernando e pegaram um ônibus na porta do prédio deles. Beatriz sentou no último banco, do lado direito, ao lado de Lúcia; Beatriz na janela e Lúcia ao seu lado. Joana e Fernando se sentaram no penúltimo banco do lado esquerdo; Fernando na janela e Joana no corredor. Depois de alguns minutos subiu no ônibus um rapaz de cabelos longos, carregando uma gaita e um pandeiro. O rapaz começou a tocar. Era um som harmonioso, uma melodia feliz, que tinha toda uma sintonia com aqueles quatro amigos. Amigos contentes, com grandes expectativas rumo ao desconhecido divertimento que os aguardava. Finalizadas as harmoniosas canções, o rapaz foi até o cobrador do ônibus, posicionou-se na frente de todos e se apresentou. Chamava-se Pedro e cursava História.

Lúcia cutucou Beatriz, atrapalhou o seu estado quase que esquizofrênico e fez comentários sobre o rapaz. Achava-o interessante e dizia, da forma menos racional possível, estar apaixonada. Beatriz comentou que também havia achado o rapaz bonito, mas sabia que, como sempre, a paixonite de Lúcia deveria durar poucas horas. Bastava que o seu estado racional, que de ínfimo não tinha nada, tivesse mais domínio do que a espontaneidade das ações mal pensadas. O rapaz se aproximou dos quatro, querendo trocados pelas belas músicas. Lúcia o contemplou com algumas moedas. Joana, que a esse momento já sabia do interesse de Lúcia por Pedro, iniciou a interação. Pedro ficou próximo dos quatro, conversando. Beatriz só ficava calada, olhando para a paisagem ao longe, com os pensamentos mais distantes que a paisagem ao longe. Pedro perguntou-lhe algo diretamente; queria saber se ela havia participado de um encontro de história. Ela apenas disse que não e continuou muda. Não era do feitio de Beatriz ser extrovertida.

Chegaram a Olinda. Desceram do ônibus e Pedro os acompanhou. Foram os cinco, andando, rumo às ladeiras de concentração da multidão. Beatriz e Joana acenderam um incenso e foram andando, alegremente. Logo no início de uma larga avenida foram surpreendidos por crianças com spray de uma espuma de textura esquisita. Foi inevitável passar pelas crianças e permanecer com aparência limpa. Os braços, o rosto, o cabelo e as roupas agora possuíam patacas de espumas de formas diferentes. A raiva também foi inevitável. Beatriz teve vontade de abrir a boca das criancinhas indefesas e fazê-las engolir aquela espuminha estranha. Mas, era carnaval, a culpa de estar naquele antro de folia, de sujeira, era apenas dela. Estava sujeita a tais acontecimentos e o que a restava era apenas a aceitação dos fatos.

No início da primeira ladeira, Beatriz queimou um homem com o seu incenso. Joana tinha sugerido o incenso como arma de defesa, no caso de algum engraçadinho tentar as beijar à força, mas, no caso de Beatriz, foi por pura displicência. Pediu desculpas ao homem, que aparentemente ignorava seu arrependimento, e apagou o incenso com medo de fazer uma nova vítima.

As garotas haviam decidido, na noite anterior, aderir à "socialização". Ou seja: se alguma das meninas ficasse com alguém, teria que dividir com todas as outras; sem sentimentos possessivos, sem monopolização. Logo, se Lúcia ficasse com Pedro, Beatriz e Joana também deveriam beijá-lo, mas não iriam fazer questão se ele optasse por ficar mais com ela. Não mesmo.

O grupo decidiu ir para uma praça onde, possivelmente, o 'gueto' deles compareceria. Foram para a tal praça e Beatriz começou a ingerir o tão refrescante néctar: cerveja gelada. Fernando encontrou com um amigo chamado Carlos e se distanciou dos quatro. Lúcia, Joana, Pedro e Beatriz foram para uma escadaria no alto da praça. Pedro queria fumar um baseado e as meninas resolveram acompanhá-lo. Mais cerveja, baseado e uma discussão apareceu. Pedro começou a defender a forma de governo de Stálin, Beatriz permanecia muda e Lúcia, indignada com a opinião alheia, defendia suas idéias de forma bastante coerente contra o regime opressor.

Mais tarde resolveram se juntar à multidão. Desceram a escadaria e Pedro comprou uma cachaça regional que continha umas ervas. Todas experimentaram e acharam bastante agradável. Tinha um cheiro forte de álcool concentrado e um gosto suave de ervas misturadas. Voltaram a subir ladeiras. Foi necessário que pegassem nas mãos e andassem em fila indiana. Houve um momento em que Pedro era o primeiro da fila. Beatriz era a segunda, de mãos dadas com ele.

Subir ladeiras, pular, dançar, beber e descer ladeiras. Em uma das ladeiras Beatriz continuava de mãos dadas com Pedro, quando este a beijou. Disse-a que desde o momento do ônibus havia gostado dela. Beatriz, um pouco constrangida, falou do trato da “socialização”, e mandou-o beijar as suas duas outras amigas. E continuaram assim, pelas ladeiras de Olinda, beijando-se, os quatro.

Depois de um tempo resolveram se distanciar da multidão. Começaram a freqüentar ladeiras mais afastadas e mais vazias. Uma das casas em uma ladeira estava aberta, com um jogo de luzes, um som bastante potente e uma música bastante destoante daquele ambiente. Tocava música eletrônica e tinha até mesmo um dj. Os quatro não hesitaram; entraram naquela pseudo-boate e começaram a dançar. Pedro beijava Lúcia, depois beijava Beatriz e depois Joana. Continuaram assim, dançando muito, beijando-se em demasia e percebendo os olhares das pessoas que passavam na porta da casa. Depois saíram da casa, prosseguindo a prazerosa tarefa da “beijação” coletiva e chamando mais ainda a atenção das pessoas.

Um carrinho de sorvete passou por eles e Pedro ofereceu às garotas. Disse para elas que queria pagar com os trocados que havia recebido no ônibus. Elas aceitaram e foram se sentar numa praça na frente do mar. Pedro continuava o ritual de beijar uma, a outra, depois a outra. Já estava anoitecendo quando descobriram que um show interessante estava para começar. Andaram até a praça aonde o evento iria acontecer e lá encontraram Fernando, que havia se distanciado do grupo logo no início.

O show começou e, para surpresa das meninas, três argentinos que elas haviam conhecido na noite anterior, estavam lá. Cumprimentaram-se de forma superficial. Joana havia ficado louca por Rick, Lúcia por Eduard e Beatriz por nenhum. Mas, no auge da embriaguez, Beatriz resolveu falar com Rick. Teve uma súbita necessidade de comentar do trato de socialização que elas tinham. Rick a beijou e ela falou que ele deveria beijar suas amigas. Depois de alguns minutos a “socialização” estava mais em prática do que havia estado em todo o carnaval das garotas. Rick beijava Joana e Beatriz ao mesmo tempo, depois beijava Lúcia, que estava beijando Eduard. Martin beijava Beatriz, Beatriz voltava a beijar Pedro. Beatriz beijava Lúcia, depois beijava Joana, que beijava Fernando. E assim continuou essa noite tão surreal, até o show terminar e as meninas decidirem voltar para o apartamento em que Lúcia e Fernando estavam hospedados. Todos os recém-amigos também foram devidamente convidados.

No caminho até o ponto de ônibus foi sendo feito, inconscientemente, certo direcionamento monogâmico. Lúcia beijava apenas Eduard e Rick beijava apenas Beatriz. Joana ficou chateada com Beatriz, chamando-a de egoísta, possessiva e dizendo que ela havia monopolizado o garoto. Porém, ela não teve escolha. E já que estava gostando daquele momento, não iria deixar de fazê-lo devido aos caprichos de Joana.

Chegaram ao apartamento. Ficaram na varanda, conversando, beijando-se. Rick voltou a beijar Beatriz e esta convidou Joana para participar da “beijação” novamente. E assim a noite prosseguiu, ao som da gaita e do pandeiro de Pedro e das conversas interessantes que surgiam ao término de outra.

Havia sido um dia bastante incomum na vida deles. Um acontecimento que não deveria se esvaecer da memória com facilidade. Um dia da predominância da loucura, da ausência do medo, da ousadia. Quando teriam coragem novamente para transpor as barreiras que a sociedade impõe? Mas, independentemente de coragem, o incomum, na presença da repetição, tornar-se-ia banal.